A neve
“Eu já caí aqui no inverno, uma nevasca horrível. Liguei para minha chefe, avisando que não ia. Ela me perguntou como assim, você não vem? Eu disse, ué, tem neve até o joelho, você não viu? Mas menino, só falta você. Só falta eu? Como assim? Esse povo todo conseguiu sair de casa?”. Era a primeira semana que Fredson ia começar a trabalhar em uma loja de Duty Free no aeroporto internacional da cidade de Toronto. Ele já tinha visto neve quando morou em Nuremberg, na Alemanha, mas não se comparava com o gelo da metrópole canadense. Até então, Fredson nada sabia do Canadá, além dos esportes de inverno que assistia por influência do irmão. “Fora isso, era um mistério”. Mistério esse que ele decidiu peitar ao se casar com um espanhol que residia há trinta anos no país. “Eu não tinha minha documentação na Alemanha, Julio tinha vida estável aqui, ele sugeriu minha mudança, falei let’s go. Vambora. A gente casou em Salvador. E eu vim”.
O começo
Muito antes de aprender a conferir a temperatura do dia no celular, antes de ir para Nuremberg como dançarino, antes de cogitar sair do Brasil, Fredson vivia no Vale das Pedrinhas, um bairro popular em Salvador. Lugar de lembranças contraditórias. Se por um lado ele perdeu muitos amigos para as drogas, é também onde aprendeu a importância de se ter uma comunidade. “As velhas da rua passavam o olho na gente. Eu nunca tive avó. Uma morreu, a outra, materna, morava no interior e nunca quis saber dos netos. As senhorinhas eram quem cuidavam de mim”. Sua casa era pobre. Pobre mesmo, como ele gosta de enfatizar. Com o pai, a mãe, a irmã e mais dois irmãos, ele dividia o que chama de quadrado. Era preciso prender a geladeira enferrujada com elástico do tipo que fica embaixo de sofás antigos, junto com um gancho que o pai fazia para manter a porta fechada. Só duas bocas do forno funcionavam. A mãe batalhava para sustentar a família. O pai também sobrevivia entre suor e luta, mas exagerava na bebida, o que incomodava Fredson. “Hoje sei que meu pai era alcoólatra. Do tipo leve, digamos assim. Ele chegava do trabalho, bebia e dormia. Eu não gostava. Tínhamos treta. Mas sou muito grato a ele que já morreu. Sinto muita falta dele. Eu, minha irmã, minha família, choramos com saudades”.
O nome do pai era Carlos. A filha primogênita foi chamada de Cintia com a letra C. O segundo filho, Carlos André. Fredson foi o terceiro e ajudou a nomear o irmão caçula, prestando uma homenagem a si mesmo. “O que rimava com Fredson? Aí veio Jeferson”. Embora o clã fosse grande, ainda deram um jeito de arrumar espaço para mais gente. O tio, por exemplo, teve nove filhos. Em algum momento, todos foram recebidos na casa do irmão de Jeferson. Teve também a história da vizinha que ajudavam com comida e inclusive com a compra de um botijão de gás. “Não sei como a gente dava conta. Mágica. A gente tinha essa mágica que acho que vem do baiano”. Talvez tenha sido por meio dessa magia que seu primeiro contato com a moda tenha começado.
Talento
Foi uma menina mais nova da rua que lhe pediu para desenhar um vestido. Fredson topou e ela levou o desenho pronto para uma costureira. Encantado por ver sua obra realizada, passou a cortar suas roupas, as roupas dos seus amigos, pintar tecidos com água sanitária, deixando a imaginação lhe guiar. Mais ou menos na mesma época, a mãe trabalhava em uma escola de “gente rica”. Ele e os irmãos a ajudavam fazendo os painéis de fim de ano que a escola usava como decoração. Se deliciava. Cortava cartolina, se divertia com a tinta. A mãe reparava como o filho do meio era talentoso e ficava triste por não poder lhe pagar um curso de pintura. E foi justamente o que Fredson se deu de presente quando fez dezoito anos.
Embora tivesse estudado design de moda, o mercado em Salvador o desanimou. “É muito fechado, difícil de trabalhar. E duas áreas predominavam: a que é conhecida como clássica e a moda afro, ou o que imaginam como moda afro. Eu não me identificava com nenhuma das duas ”. Sem desistir do caminho das artes, ele foi parar na Fundação Cultural do Estado da Bahia, a FUNCEB. Foi nesse ambiente, diante de discussões que até então ele não tinha sido exposto, que Fredson se percebeu negro pela primeira vez. Como muitos brasileiros, principalmente para quem nasceu na década dos anos 80, ele cresceu em um meio em que o tema raça não se discutia. O pai tinha a pele escura. Como ele, só o irmão André tinha a tez similar. A mãe e o restante dos filhos tinham a pele mais clara. “Família misturada. Aliás, nós somos assim, em essência. A gente era sarará, cabelo de fogo pelo cabelo avermelhado. Aí comecei a frequentar o Curuzu, o Pelourinho e entendi, menina, então a gente é preto, né? Somos uma família de preto. E é massa porque tira você do limbo, é uma forma de ser ver”.
Além do curso de pintura, estudou também dança, área em que se profissionalizou. Na FUNCEB ele soube que havia audições as quais escolhiam dançarinos para trabalharem fora do país. O primeiro teste que ficou a par o levaria para Dinamarca. A mãe bateu o pé. Ele não ia. Daquela vez, se deixou vencer. Porém, quando surgiu a oportunidade de ir para Alemanha, ele peitou a proteção materna. “Agora eu vou. E fui. Por dinheiro. Queria ajudar a minha família”.”.
Alemanha
Ao chegar em Nuremberg, inicialmente trabalhou como dançarino. Três semanas depois, se cansou. “Nada contra É o Tchan, mas a gente só dançava aquilo. Era algo meio estereotipado, roupa carnavalesca. Eu tinha estudado balé, dança afro, contemporânea, me contrataram para isso? Não que eu reclamasse, queria grana. Talvez meu TDAH tenha me deixado impaciente”. Mesmo sem a documentação necessária*, ele aceitava qualquer bico: cuidar de idosos, crianças, varrer chão, lavar pratos, fazer coquetel, desses trampos em que, como Fredson mesmo define, a pessoa serve para fazer mil e uma atividades.
E como era a cidade alemã? Difícil. Principalmente por não dominar o idioma. Se perceber estrangeiro, ocupando o lugar do outro, foi frustrante. Fredson observa que nós não pensamos ao nos comunicarmos no Brasil, ou seja, quando se nasce e se aprende a língua materna, a comunicação é automática. Pensar e não ter essa leveza para poder conversar foi desafiador. Ele também percebia um tratamento diferente dos habitantes em relação às pessoas que não falavam alemão. “Você realmente se torna estrangeiro. O mundo era novo. Eu era uma folha em branco”.
Com a possibilidade de ser essa folha lisa, Fredson decidiu se reinventar. Até então, usava os cabelos raspados. Por estar temporariamente impossibilitado usar a voz, ele usou o corpo. Os fios crespos cresceram. As roupas ficaram extravagantes. Ele se permitiu brincar com que lhe atraía, transitar entre vestimentas masculinas e femininas. Se ele não podia falar, ao menos seria visto. A partir daí, uma nova identidade visual foi criada.
Julio
De férias por dois meses em Salvador, viagem que fez para conhecer o sobrinho Samuel, visivelmente sua maior paixão, e também para desanuviar a mente, ele decidiu ir assistir ao filme “Jogos Vorazes”. A fila do cinema estava enorme e não andava. Fredson, meio impaciente, puxando papo com o rapaz que achou ser nativo do sul, disse que não tinha tempo a perder. Que o filme se danasse. Ele ia ao Pelourinho. “Também vou”. Eles foram. Fredson descobriu que o rapaz se chamava Julio, falava português, o sotaque não era sulista, mas espanhol, apesar dele morar em Toronto, no Canadá. Durante o resto dos seus dias na Bahia, os dois não se desgrudaram. A família foi apresentada ao novo namorado. “Foi orgânico, eu sabia que ele era para casar”. Diante de uma situação instável na Alemanha e recém saído de um relacionamento complicado, sua vida começou a seguir por um rumo inusitado. Em alguns meses, após várias trocas de mensagens, com Fredson já de volta em Nuremberg, Julio propôs casamento e uma nova moradia. “Então, let’s go, vambora descer”.
Moda, de novo
“A mudança foi tudo que eu precisava para ressurgir como humano”. Movido pelo comichão de conversar com o povo, Fredson se inscreveu na Toronto Fashion Academy, ainda que seu inglês fosse “precário”. Após muito tempo trabalhando na loja de Duty Free, mesmo gostando de ouvir conversas alheias e estar perto de gente, ele queria voltar a estudar moda. Na primeira aula, não entendeu nada. Insistiu com a ajuda do dicionário de Julio. Por ser uma pessoa muito visual, ele se orientava através das imagens das apostilas para entender o que estava sendo explicado.
A carreira deslanchou por acaso, quando se voluntariou para trabalhar em uma fashion week internacional canadense. Lá, ajudando com as roupas de uma estilistas mexicana, foi abordado por uma fotógrafa. Impressionada com o modo como ele não tinha parado para descansar por um só minuto, ela perguntou o que ele faria no dia seguinte. “Respondi que estava free”. Mais tarde, essa fotógrafa, Olga, viria a ser sua amiga. Naquele momento, ela abriu as portas para a nova trajetória que Fredson almejava percorrer. “Moda é contato. Dali, conheci fulano, sicrano. Já viajei, trabalhei na Vogue Itália, Vogue Ucrânia, já fui para Paris”. Mas foi em Londres, ao assistir um desfile voltado para crianças, que ele teve a ideia de criar o Bahia kids. “Vi aqueles meninos e meninas na passarela, pensei, gente, quero ver os pretinhos brilhando também”.
Primeiramente, o Bahia kids foi criado priorizando crianças negras por elas terem menos oportunidades. Hoje em dia, o projeto virou uma salada imensa de biotipos. Sua intenção é usar o projeto para incentivar a autoestima da garotada. “Muito dessa minha força, dessa minha loucura, vem de minha mãe. Ela dizia que eu era inteligente. Eu acreditei nisso. A magia vem disso”. Magia, a palavra que retorna.
O lar
Fredson e a família costumavam assistir televisão. Carlos, a mãe, Cinthia, Carlos André, ele, todo mundo no mesmo quadrado, reproduzindo sons diferentes, mas que se uniam displicentes, só pelo prazer do encontro. Em meio ao tumulto, ele se deleitava deitando no chão gelado. Para escutar. Para sentir. Para se acarinhar em aconchego. “Sou do mundo, mas me vejo velho ali, naquele canto de conforto. Apesar de toda dor é onde me reconheço. Meu lugar favorito é a casa de minha mãe. Eita”.
*Por motivos políticos, jamais utilizo a palavra ilegal para tratar de imigrantes. Nenhum ser humano, nenhum, mau ou bom, açucarado ou amargo, é ilegal.
Gente, ri muito com esse comentário da Neve. Me lembro muito meu começo na Irlanda e as mil desculpas que eu achava para não sair de casa no frio, e olha que nem tinha neve!!