Há mais de dez anos sou estrangeira, há quase um ano saí por aí entrevistando gente estrangeira. Oi? Calma, tome um café e me deixe explicar direito.
Apresentação
Oi, sou Mariana Mohsin (o sobrenome oficial é outro, Mohsin é do meu marido, muito bonito, não roubei para carimbar meus documentos, mas roubei para a vida). Baiana, formada em Jornalismo, em Artes Cênicas, que de tanto brincar de morar fora do país, se casou com um sujeito de Bangladesh e, depois de Nova York e Vancouver, veio parar em Toronto. Por enquanto. Estou em Toronto por enquanto. Meu marido não fala português. No entanto, me diz que se me der curto-circuito de eu querer ir para onde Judas perdeu as botas no Brasil, ele vai. Antes de sonhar em ser casada, antes de sonhar em ser jornalista, mas já contemplando a carreira de atriz, ainda criança, eu me divertia com duas coisas nas horas vagas no colégio: ler e escrever. Duas atividades que continuam me amparando em instantes em que me vejo como uma barata tonta, remando porque se deixar de remar eu sequer afundo, é só água parada e falta de horizonte. Ler e escrever.
Pronto, apresentada. Não sei se dignamente, mas é um começo. Talvez eu deva seguir pelo que aconteceu há duas semanas.
O caso
Bom, a sala de Pilates. Duas mulheres brancas, duas vozes, um fuxico. Uma com namorado que estuda nos Estados Unidos. Ele tinha concluído a universidade, ela foi para a formatura. A amiga: e aí? Onde vocês vão morar? Você vai se mudar? Uma terceira fulana se intrometeu no assunto. E quem vai querer morar naquele lugar agora? As três riram, fizeram piadas, mas a do namorado formado em terras americanas disse que não aconteceu nada demais quando passou pela área da alfândega e imigração. O oficial que a atendeu até brincou com ela. A segunda concordou, também ouviu de uma prima, parente ou papagaio que foi para lá recentemente e tampouco não sofreu nenhuma consequência. A terceira assentiu. Meio-dia. Hora da aula.
Acidentes
Sou baiana. Já disse. Brasileira. Óbvio. Da América Latina. Você que me lê deve pensar, minha filha, não sou burra. Também sou casada com um muçulmano. Tudo bem, sei que você deve ter deduzido essas informação quando leu o nome Bangladesh. Se trago à tona a obviedade desses fatos é porque foram eles que surrupiaram minha cabeça quando meus ouvidos se tornaram testemunha forçada do papo acima.
Meu marido me contou que foi questionado pela imigração americana quando tinha sete anos de idade. Na média, o governo Obama, aquele que todo mundo ama (e pessoas brancas muito simpáticas, muito educadas, muito tolerantes, se sentem muito bem, muito legais, muito distintas por amá-lo, como não?), deportou nos seus governos, em média, 1,56 milhões de imigrantes (e sim, Obama não é Donald Trump, mas não, não existe deportação com humanidade, pelo amor de Deus, da Deusa, de James Baldwin e qualquer divindade). No Canadá, o desemprego cresce, a população de rua se expande e o mercado imobiliário infla com preços absurdos, políticos fofos e maus sempre dão um jeito de culpar quem migrou para as bandas de cá.
Ser brasileira, baiana, negra (morena para meu povo da Bahia porque morena é pau para toda a obra, não tem problema, ou melhor tem, só não tenho tempo, mas Bahia, te amo, amor complexo, como tenho por todos meus amores, que saudade) casada com um muçulmano foram palavras pisca-pisca em meu cérebro quando escutei a leveza no tom das três mulheres brancas.
Na hora, tive raiva. Meu anjo, legal o seu mundo. Mas sério? Sério que só agora você se indigna um cadinho contra a política americana, mas, ainda assim, eles lhe tratam bem no fim das contas, então, tudo às ordens?
É, acho que sou um pouco moralista.
Depois, pensei. Pensei em como também conheço muitos imigrantes que assistem o noticiário e falam, bom, isso não é com a gente. Conheço filhos de imigrantes que se sentem muito superiores por terem nascido no país, estão salvos, estão acima da média, estão acima dos outros. O outro. Eis a questão.
Meu corpo. Os corpos das três mulheres brancas. Como vim parar aqui, não apenas em Toronto, mas nesta identidade que me dá o nome de Mariana, o sobrenome de meu pai e minha mãe, da cidade onde nasci. Um acidente. Por acidente, eu não sou essas mulheres. Por acidente, elas não acreditaram por anos que fazer escova nos cabelos as tornariam mais apresentáveis na hora de passar pelo crivo dos oficiais da imigração. Por acidente, eu frequento uma posição social que me fez perambular em lugares estrangeiros sem dificuldades financeiras, estudar, morar em um bairro bacaninha. Por acidente, eu não sou como Sabdi, a arrumadeira do prédio em que vivo, que não domina o inglês e é professora no México. Por acidente, eu sou. Nós somos. Você é. A gente se agarra a características que, em tese, nos resguardam de sermos a pessoa que passa fome na rua, o estrangeiro com sotaque carregado. Mentira. A gente se agarra em mentiras sem a beleza dos causos que encantavam Ariano Suassuna. No fim, nenhuma dessas mentiras nos protege. Nenhuma delas, nos torna livres. A liberdade é uma ilusão.
A ideia
Então, quem somos? Não tenho a pretensão da certeza, até porque a maior parte das convicções nos engasgam. São tiranas. Mas quis sair pelas ruas de Toronto. Fugir de mim. Conversar com gente conhecida e desconhecida, gente que veio de lugares longínquos, gente que nasceu de quem foi parida por territórios remotos. Conversei e ainda conversarei com quem quer conhecer a terra de origem do pai e da mãe, com quem é canadense, mas não se sente canadense, com quem fantasia com as supostas perfeições de países de “primeiro mundo”, com quem é classe média e até aqui caminhou com tranquilidade, com quem não tinha a documentação adequeada, nem inglês na língua, nem rumo, eira ou beira. Gente normal estranha, gente estranha normal. Pessoas plurais. A imigração é meu pano de fundo para destrinchar esse buraco que parece pingado nos pontos dos is na palavra identidade. Escutar quem tem sua história, de um modo fofo ou cruel, questionada a todo momento.
Eu não faria isso sem os livros. Sem escrever. Como falei no primeiro parágrafo desta introdução que já está longa, livros e escrita são o meu balanço da rede em tardes de domingo. Cada pessoa, ganhará um perfil neste espaço. No Instagram, lugarzinho do qual fugi, fugi e quase escapuli por muito tempo, cada semana, vídeos da pessoa entrevistada e um livro. Um livro que tenha um trechinho da sua história, palavras indiretas ou diretas que eu tenha associado ao que escutei. É meu objetivo. A escuta. Não falar muito de mim. Oi, sou Mariana Mohsin. Vem comigo?